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Carlos Gomes

08/09/2011

 

Carlos Gomes (Campinas, 1836-Belém do Pará, 1896)
 
Na Rua Regente Feijó, próximo à Bernardino de Campos, existe uma placa num edifício sem graça. E só ela, ignorada pela maioria dos transeuntes, indica que ali nasceu em 1836 e morou por muito tempo um garoto conhecido por Tonico, que aprendia música com o pai e cantava no coro da igreja, mas sempre fugia de suas obrigações musicais, principalmente nos sábados de aleluia quando ia juntar-se à molecada que malhava os Judas enforcados nos palmitais. Ou quando ia brincar nas enxurradas que desciam pela Rua das Casinhas (General Osório) “carregando com tudo quanto é sapo morto, galinha podre, sapatos e chinelos, cestos, jacás; todo pandemonium, a despejar nos córregos que tortuosamente existiam”, nas palavras do próprio Tonico já no outono da vida, quando alquebrado e empobrecido ainda escreveu: “Daria toda a minha papelada de música em troco da volta àqueles tempos e poder rever, admirar, tocar, sentir o perfume e molhar as mãos na árvore orvalhada do cambuí florescido ou com a fruta madura”.
 
Hoje não existem enxurradas no Largo do Rosário, cambuís são raros e a casa da rua da Matriz Nova desapareceu para dar lugar ao “progresso”. Tudo o que resta do local onde o Tonico do Maneco Músico se transformou em Carlos Gomes é aquela placa, doada pelo Centro de Ciências, Letras e Artes, numa singela homenagem à humilde casa, que teria sido preservada em qualquer cidade consciente de seu passado.
 
Contra a vontade do pai, Carlos foi para o Rio de Janeiro, ingressou no Conservatório e começou sua trajetória com duas óperas em português: A noite do castelo em 1860 e Joanna de Flandres em 1863. Graças a essa última ganhou uma bolsa do Conservatório para estudar em Milão, onde em 1870 conseguiu dar o passo mais importante de sua vida: apresentar Il Guarany no Teatro alla Scala. Apesar da distância, sua cidade natal deu valiosa contribuição ao enviar parte dos recursos necessários para a montagem da ópera, arrecadados a duras penas pelo mano José Pedro de Sant’Anna Gomes (1834-1908), o Juca Músico.
 
Graças à ajuda recebida o Brasil, a história de Ceci e Peri retratada em Il Guarany foi um grande sucesso, mas Gomes queria avançar musicalmente e compõe Fosca, que estreou no Teatro alla Scala em 1873. Sem repetir as fórmulas consagradas, criou uma partitura vigorosa, utilizando temas recorrentes, orquestração sólida e um tratamento vocal inovador, com grandes saltos e harmonias ousadas. A despeito de sua indiscutível qualidade musical, Fosca não teve boa repercussão, provavelmente por supostas tendências wagnerianas, um acinte na Itália da época. Outro problema pode ser creditado ao caráter duvidoso de Fosca, contrário à maioria das heroínas das óperas da época. Fosca seria remontada no Scala em 1878 quando teve uma recepção bem melhor, à altura da qualidade deste trabalho.
 
Entretanto, antes disso, ao pensar em uma nova ópera, Gomes viu-se obrigado a criar uma partitura mais adequada ao gosto italiano, surgindo entãoem 1874 Salvator Rosa. Esta estreou em Gênova com enorme sucesso, sendo que um dos trechos mais destacados desta ópera, a ária Mia piccirella, cantada pelo jovem Gennariello, foi gravada por diversos cantores, incluindo o lendário Enrico Caruso, ainda no começo do século XX. Apesar de Salvator Rosa ter sido a mais rendosa de suas óperas no aspecto financeiro, a predileção de Carlos Gomes sempre foi a Fosca.
 
Gomes retornou ao Teatro alla Scala em 1879 para apresentar Maria Tudor, um de seus trabalhos mais densos e elaborados. Novamente a ópera não foi bem sucedida, mas desta vez por motivos que nada tinham a ver com música. Entre eles podemos destacar o desagrado de músicos italianos com tantas obras de um estrangeiro subindo à cena no teatro mais importante da Itália. Tais dificuldades, agravadas por diversos problemas pessoais, inclusive a morte de um filho, provocaram um vácuo na criação operística de Carlos Gomes e foram necessários dez anos até que conseguisse concluir, não sem muito sofrimento, um novo trabalho.
 
Lo Schiavo estreou no Rio de Janeiro em 1889, após uma série de problemas na Itália, onde o argumento abolicionista do Visconde de Taunay foi totalmente descaracterizado. Os escravos negros foram transformados em índios e a ação, que originalmente se passava em 1801, foi transferida para 1567, o que tornou o libreto bastante inverossímil. Mas isso não impediu o compositor de escrever um de seus mais belos trabalhos, pleno de momentos inspirados, entre os quais se destacam a Alvorada e trechos de grande beleza  como as arias reservadas aos heróis Ilara e Iberê.
 
O último trabalho operístico formal de Gomes foi Condor, a única que escreveu por encomenda, que estreou no Scala em 1891, com recepção moderada, talvez por sua inventividade melódica e um sinfonismo bastante denso. Esta obra tem passado por revisões que ressaltam a sua qualidade, talvez a menos divulgada na produção operística de Gomes.
 
Em 1892 Gomes apresentou no Rio de Janeiro seu derradeiro trabalho de grande porte, o poema vocal-sinfônico Colombo, concebido para ser apresentado em forma de concerto, o que não foi bem aceito pelo público brasileiro, que esperava cenários e figurinos como em uma ópera tradicional. É obra de um compositor maduro, que dominava a escrita orquestral e vocal, e traz alguns dos momentos mais marcantes da criação musical de Carlos Gomes.
 
Após longa enfermidade e depauperado, o compositor faleceu em 1896, quando contava sessenta anos, em Belém do Pará. Sua trajetória da modesta Campinas, de onde saiu em 1859, ao portentoso Teatro alla Scala de Milão chamou a atenção do escritor Raphael Duarte que em 1905, lembrando-se do menino conhecido como Tonico, que tocava triângulo na Banda do pai, o Maneco Músico, comentou: “Quem diria que aquele fedelho repenicador de ferrinhos seria a glória de seu país?”.
 
 
Lenita W. M. Nogueira
 
 

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