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Missa de São Sebastião

20/09/2014
 
Carlos Gomes (Campinas-1836-Belém do Pará, 1896) foi essencialmente um compositor de óperas e a este gênero dedicou a maior parte de sua produção musical. Não há registro de produção sinfônica fora das óperas, mas podemos destacar obras camerísticas como a Sonata em Ré, conhecida como Burrico de Pau, e Saudade, escrita em parceria com seu irmão Sant’Anna Gomes, ambas para cordas, e algumas peças para piano.
 
No campo vocal, além da produção operística, escreveu diversas canções hoje bastante reconhecidas e executadas. No que se refere ao gênero sacro, sua produção não é muito extensa e a maioria das peças foi escrita antes de sua partida para a Itália em 1863. Este é o caso das duas missas que escreveu ainda em Campinas, a de São Sebastião (1857) e a de Nossa Senhora da Conceição (1859).
Carlos Gomes era filho de Manuel José Gomes (Santana de Parnaíba, 1792-Campinas, 1868), cujo apelido, Maneco Músico, já indica qual era a sua profissão. Este atuou como mestre-de-capela em Campinas por mais de cinquenta anos, já que chegou a esta cidade, então vila de São Carlos, em 1815 e trabalhou como músico até sua morte em 1868.
 
Mestre-de-capela era a pessoa responsável pela música em todas as cerimônias dentro da igreja. Na história da música, vários músicos reconhecidos exerceram esta profissão, como Johann Sebastian Bach e seu filho Carl Philipp, Haydn, Haendel, Monteverdi e Palestrina. O trabalho era extenuante, já que suas funções eram variadas indo desde ensaios e regência do coro e da orquestra, passando pela obrigação de compor peças para ocasiões diversas, copiar obras de outros compositores, ensinar música a meninos (às meninas era vedada esta atividade), além de arregimentar e pagar os músicos. O extenso acervo musical de Maneco Músico é um exemplo desta faina e encontra-se no Museu Carlos Gomes em Campinas, onde podem ser encontrados também peças de seu outro filho, o compositor e maestro Sant’Anna Gomes (Campinas-1834-1908) e, naturalmente, do próprio Carlos Gomes.
 
Ao se deparar com a grande quantidade e qualidade de música produzida por Manuel José Gomes durante sua vida, seja de sua autoria ou cópias de obras de outros, pode-se perceber qual era o meio musical que Carlos Gomes vivenciou desde a infância, como músico e ajudante do pai nas tarefas musicais da igreja. Ali é grande a produção de música sacra e, além de peças de Maneco, encontramos obras de compositores importantes na história da música brasileira como Joaquim José Emerico Lobo de Mesquita e outros compositores do período áureo de Minas Gerais, André da Silva Gomes, mestre-de-capela da Sé de São Paulo, do músico ituano Jesuíno do Monte Carmelo, dos cariocas José Maurício Nunes Garcia e Francisco Manuel da Silva, entre tantos outros, inclusive estrangeiros.
 
Desde menino Carlos Gomes ajudava o pai em suas tarefas na igreja, mas também tocava na Banda do Maneco. A coexistência destes dois ambientes foi fundamental para a sua formação como compositor, cuja qualidade pode ser observada naquela que seria sua primeira obra de grande porte, a Missa de São Sebastião. A data exata desta composição é controversa, a filha de Carlos Gomes, Ítala, indicou 1854, quando Carlos Gomes teria dezoito anos. Entretanto, no conjunto que manuseamos, encontramos cópias de épocas diferentes, a mais antiga de 1857 e a mais recente de 1881. O mais provável é que a data da composição seja 1857, já que o copista escreve o número sete de tal maneira que este se confunde com um quatro.
 
A Missa de São Sebastião já era conhecida e foi gravada pela Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas em 2005, mas só os trechos do Kyrie e Gloria, o que indicaria trata-se de uma Missa Brevis. Entretanto, novas pesquisas trouxeram à luz as demais partes, Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei, e temos aqui a apresentação da missa completa, ou seja, trata-se de uma estreia mundial de uma obra inédita de Carlos Gomes.
 
A autora encontrou estes manuscritos no Museu Carlos Gomes em um rol de partituras que, por razões desconhecidas, estava separado dos fundos Carlos Gomes e Manuel José Gomes. Ao todo são seis copistas diferentes e há cópias anônimas, outras assinadas por “Gomes Filho”, de 1873-74, e “Gomes irmão” de 1881. O primeiro deles parece ser Tomás de Aquino Gomes (Campinas, 1859-1889), irmão mais jovem de Carlos e “Gomes irmão” talvez seja Manuel José Gomes Jr., irmão mais velho de Carlos. Isso é absolutamente incerto, mas podemos afirmar, pela caligrafia musical sofrível, que não se trata de Sant’Anna Gomes, cuja única participação está na parte incompleta de oficleide, justamente a que nos dá a certeza da origem da obra, já que ali vem a indicação “Credo de São Sebastiam”.
A caligrafia das cópias anônimas de 1857 poderia eventualmente ser do próprio compositor, mas é bastante diferente da escrita algo esparramada e ligeira característica de Carlos Gomes. Isso somente poderá ser determinado a partir de um estudo grafológico, já que não podemos descartar que a escrita de Gomes tenha se transformado ao longo do tempo.
 
O conjunto é formado por partes cavadas, ou seja, não há partitura ou grade com todos os instrumentos, cada um deles vem separado em cadernos próprios, o que demanda um grande trabalho para a montagem da partitura, ainda mais se pensarmos que, ao escrever cada parte instrumental ou vocal separada das demais, não há comparação imediata, alguns erros só vão aparecer na partitura. E neste caso, esta dificuldade foi ampliada pela variedade de copistas, cada um com seu estilo, com diferenças nas anotações de cada um deles.
 
Uma vez encontrados os documentos, iniciamos a transcrição musicológica da partitura e neste momento se acreditava ser uma obra autônoma, já que em todos os manuscritos vem assinalado apenas “Credo”. Apenas durante o processo de digitalização da partitura é que foram sendo encontrados indícios de que se tratava de continuação da Missa de São Sebastião, obra que estava, portanto, incompleta até aquele momento.
 
É uma obra de grande porte escrita para solistas, coro misto e orquestra. Esta inclui flauta, oboé, clarinetas, trompete, trompas, trombone e cordas. No manuscrito original aparece o oficleide, instrumento que caiu em desuso no século XX. Pode-se notar que, embora peça de juventude, Gomes já tinha domínio da orquestração, a qual trabalha de forma bastante organizada e orgânica.
 
Quanto às partes vocais em determinados momentos é notória a preferência de Gomes pelo canto lírico em detrimento do gênero sacro. As partes vocais têm uma tessitura bastante ampla e as notas bastante agudas parecem indicar que Gomes dispunha de um bom coro quando escreveu esta peça, provavelmente apresentada dentro da antiga Matriz Velha, localizada onde hoje se encontra a Basílica do Carmo. O antigo teatro São Carlos foi inaugurado em 1850, mas, devido às características da época, parece pouco provável que uma peça religiosa tenha sido apresenta neste ambiente.
 
Aproveito para parabenizar publicamente a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas por apresentar ao público este trabalho de pesquisa musicológica, como já o fez no ano passado quando apresentou a ópera Joanna de Flandres, até então inédita em sua forma original, cuja partitura foi produzida sob nossa coordenação. O empenho em resgatar e apresentar obras de Carlos Gomes é da maior importância para a música e a cultura brasileiras. Apesar dos esforços de vários músicos e musicólogos, é surpreendente notar que, passados mais de cem anos da morte do compositor, ainda estamos garimpando obras e carentes de edições revisadas de grande parte de sua obra.
 
 
Lenita W. M. Nogueira
 
 

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