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Entrevista com a Maestrina Ligia Amadio

04/07/2009

Caderno C
A música como missão

/ ENTREVISTA / Ela conta que sempre pisou com segurança em áreas de maioria masculina

 
Carlota Cafiero
DA AGÊNCIA ANHANGUERA
carlota@rac.com.br

Primogênita, Ligia Amadio foi criada para liderar. Não uma orquestra, mas, provavelmente, uma linha de montagem. Seu pai, Fernando Amadio, a queria comandando a fábrica erguida tijolo por tijolo por ele, em São Paulo. A leveza, talvez, tenha vindo da mãe, Maria Ligia, que cantava em um coro de igreja. Única filha do casal - que teve mais três meninos -, Ligia abriu os ouvidos para a música ainda muito pequena, acompanhando a mãe nas apresentações do coro.

Aos 5 anos, quis aprender piano e teve o desejo atendido pela família. Bem mais tarde, como era vontade do pai, se formou em engenharia de produção na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), mas o amor à música se tornou imperativo ao término da faculdade. Aos 22 anos de idade, precisava estudar música, e rápido.

A urgência por crescer na área fez com que ela investisse cada minuto e centavo na nova profissão que escolhera: regente. Terminada a Faculdade de Música da Unicamp, foi reger a Orquestra Sinfônica de Jundiaí e dar aulas no Conservatório Villa-Lobos, de Osasco. Com apenas 33 anos de idade, conquistou a vaga de regente titular da Orquestra Sinfônica Nacional, em Niterói (RJ). Após 12 anos na função e reconhecida em várias partes do mundo, deixou a Nacional para assumir a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas (OSMC), em janeiro deste ano. Leia a seguir entrevista com a regente.

Agência Anhanguera - Você teve ou ainda tem de provar muito o valor de sua direção, por ser mulher?

Ligia Amadio
- Nunca tive e nem tenho. Eu reconheço, sim, que é mais difícil para as mulheres. Para as outras mulheres, talvez. Mas eu nunca senti dificuldade. Acho que fui educada de uma maneira muito particular. O meu pai, Fernando Amadio, que já faleceu, me levava muito à fábrica dele, que construiu com as próprias mãos, comprando peças em ferro-velho quando era jovem. Meu pai era um gênio da mecânica. Desde os 2 anos de idade eu frequento o universo masculino e com a maior naturalidade. Tanto que sou engenheira mecânica de produção! Meu pai não me tratava diferente dos meus irmãos. Eu tinha três irmãos. Sou a única mulher e a mais velha. Na minha turma de engenharia, eram 80 rapazes e duas moças, mas nunca senti como se eu não estivesse no meu mundo.

Talvez isso se deva a uma questão de postura. Você sabia se impor.

Eu acho que o mundo é mais exigente com a mulher para dar a ela o direito de ocupar uma posição de liderança. Acredito que a mulher é mais exigida no trabalho, no sentido de que ela pode errar menos. E se ela errar, não tem tanto perdão ou então começam a dizer que ela está com TPM ou que é mal-amada, coisas assim ( ri ). E jamais as pessoas comentam esse tipo de coisa de um homem que enfrenta as mesmas tensões de um cargo.

Você parece nos mostrar que não precisa se masculinizar para ocupar um cargo de liderança.

É que eu sou feminina. Por que eu vou ter de ser diferente? Sou eu mesma em qualquer função, seja na minha vida familiar, seja na minha vida profissional. Nunca vi uma maestrina que se vista como eu. Agora, as mais jovens estão me imitando ( ri ). É verdade! Na Europa, conheci várias regentes mulheres que se vestiam ou com uma saia longa preta, justa, e um fraque e gravata borboleta, ou um terninho com calça comprida. Eu achava aquilo tão feio. Parece que quer dizer "eu posso ocupar o mesmo cargo que um homem." Óbvio que você pode, assim como você pode pilotar um avião ou dirigir um ônibus, mas não precisa ser homem.

Aí você faz questão de colocar um belo vestido de gala quando vai reger um concerto.

Acho que a situação pede isso. Estou no palco. As pessoas não vão só ouvir, mas para ver. E eu me sinto bem. Me visto da maneira que me sinto confortável.

Quantas maestrinas com carreira internacional existem?

Importantes, são poucas. Cabem em uma mão.

Por que são tão raras?

É uma profissão de tradição muito masculina. Não só os maestros, mas as orquestras também. Nas orquestras, antes, só tinham homens. Mas é uma coisa que vem mudando ao longo das décadas. É recente isso de ter maestrina.

Como era no seu curso de regência na Unicamp?

Tinham várias mulheres. Era muito engraçado, porque eram dez estudantes, sendo oito mulheres. O professor, Henrique Gregori, era maravilhoso. No começo do curso, ele falou assim, "não sei o que está acontecendo nesse mundo, porque os homens não se interessam mais pela regência, só as mulheres", como se ele estivesse decepcionado. No fim do nosso curso, só sobraram cinco alunas, todas mulheres. E ele nos disse que tínhamos sido a melhor classe que teve. E olha que ele tinha muitos anos de magistério.

Em que ano foi isso?

Eu entrei na Unicamp em 1986. Foram seis anos de curso. Então, concluí em 1991.

Como é que você trocou a engenharia de produção pela regência? Você já tocava piano desde criança?

Eu pedi para tocar piano aos 5 anos de idade. Porque eu ia na igreja com a minha mãe, que cantava no coro, e eu ficava impressionava com o órgão. Então, meus pais me puseram no piano. Embora minha mãe, Maria Ligia, seja uma artista, com um grande talento musical e com uma voz maravilhosa, na minha família nunca se pensou que um filho poderia se tornar artista. Meu pai fazia questão que a gente fosse para a faculdade. Então, o filho podia ser advogado, médico, engenheiro. E o sonho dele era que eu seguisse com a empresa dele. Então fiz engenharia. Eu nunca pensei em ser músico profissional, mas o curso de engenharia era tão puxado, tão árido, que eu sentia falta de algo que falasse com minha alma. Aí eu entrei no Coral da USP, até por uma coincidência, porque eu fui dar uma carona para uma pessoa que ia fazer o teste no coral, e para acompanhar essa pessoa eu subi até o quarto andar da reitoria e a maestrina falou para eu fazer o teste. E eu respondi que não tinha voz nenhuma, e ela respondeu "todo mundo tem voz". Essa foi minha grande primeira lição. Quando fiz o teste, descobri uma voz que eu desconhecia. Eu tinha herdado da minha mãe aquele talento. E como eu sabia piano, logo me tornei assistente do coro. Assim, de uma semana para outra, comecei a ensaiar as vozes.

Nada disso foi planejado?

Acho que fui conduzida para o meu destino. Acho que era essa a minha missão. Vi que aquilo era a minha vida. Mesmo assim, eu terminei os cinco anos do curso de engenharia. Mas, durante os dois últimos anos, me preparei para prestar o vestibular de novo.

Como é o treinamento de um regente?

Nosso treinamento é só durante a faculdade. São seis anos de treinamento técnico pesado. Da mesma maneira que você faz escalas no piano. Mas jamais estudei técnica depois que saí da faculdade. Só estudo música. Estudo as partituras e os aspectos históricos e ideológicos dos compositores, dos períodos estilísticos, e estudo profundamente o texto musical. Meu trabalho cotidiano é com a partitura. Quando saio da orquestra, vou me aprofundar nesse universo que é a criação do compositor. E isso é a coisa mais fascinante que existe. Porque você descobre o segredo dessas mentes geniais. Me emociono quando passo do período de estudar nota por nota, articulações, dinâmica, e começo a ouvir a obra inteira. É emoção de verdade, a ponto de eu ir às lágrimas.

Você também se permite emocionar quando está regendo?

Tem um momento que a gente não controla mais. Claro que se você se deixar levar como se fosse público, você está perdido. Mas, mesmo assim, há momentos em que você se desprende.

Dizem que carreira de maestro é lenta. É preciso ter uns 40 anos de idade para reger e uns 50 para ser diretor artístico. Você conseguiu tudo iss o antes dos 40.

É engraçado. Eu sempre tive uma sensação na vida de que eu estava atrasada. Por isso, galguei tudo muito rápido. Quando comecei a faculdade de música, eu tinha 22 anos de idade. Me sentia uma velha. É que meus colegas tinham 17, 18 anos, então, eu realmente era mais madura do que eles, até porque tinha passado pela engenharia, que era um curso muito sacrificado. Segundo me informaram, fui a primeira pessoa, na Unicamp, que terminou um curso de seis anos em quatro. Eu não pude receber o diploma, então, tive de fazer durante dois anos uma matéria por semestre para continuar ligada à universidade.

Como foi o início da carreira?

Comecei regendo uma orquestra jovem em Jundiaí, após passar em um concurso público, depois eu entrei no Conservat ório Villa-Lobos, em Osasco, onde dei aula durante dez anos de música, e tinha uma orquestra. Meus alunos, hoje em dia, são grandes profissionais. Alguns estão na Osesp ( Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo ), outros são regentes de coro ou cantores do coro da Osesp. Tenho muito orgulho dos meus ex-alunos. Paralelamente a isso, durante seis anos eu fiz 18 cursos de especialização em regência. No Exterior e aqui. Tive grandes professores. ( Hans-J oachim) Koellreutter ( 1915-2005 ) foi meu professor particular por dez anos. Com 33 anos, eu já era regente titular da Sinfônica Nacional. Então, embora eu achasse que tinha começado muito tarde, virei regente titular muito jovem. A maior parte dos meus músicos era mais velha do que eu.

Mas, por que você decidiu ser regente?

Porque era uma das carreiras que eu via que era mais longeva. Eu sempre tive horror de envelhecer e não trabalhar. Acho isso tão triste, ver uma pessoa que foi ativa a vida inteira c hegar à velhice, se aposentar e ser tratada como inútil. Ser tratada, porque é a época em que a pessoa está mais preparada, mais experiente. Então, eu via que os grandes regentes eram todos velhinhos e regeram até morrer. Gente que eu admirava. Quero trabalhar até morrer.

Como foi a saída da Orquestra Sinfônica Nacional, de Niterói, para vir dirigir a OSMC?

Foi sofrida. Imagina você sair de um casamento de 12 anos? Quando aqui se concretizou, soube que, na Polônia, os músicos da orquestra também me queriam como regente titular, mas o diretor tinha o seu preferido. Na Sinfônica Nacional, entreguei minha vida lá.

Quantas línguas você fala?

Eu falo inglês, italiano, espanhol e entendo bem o francês. Minha mãe mora na França há uns seis anos. A gente, que é regente, precisa falar vários idiomas. É um mundo muito internacional. Eu rejo muito fora. Morei três anos na Argentina ( regendo a Orquestra Sinfônica da Universidade Nacional de Cuyo ), simultaneamente, dirigia a Orquestra Nacional.

Você fez um trabalho pedagógico importante em Mendoza.

Eu tive uma classe de regência na Faculdade de Música. Durante três anos eu tive meus pupilos. Assim que eu me tornei regente titular lá.

Pretende dar aula de regência em Campinas?

Eu tenho muita vontade de voltar à universidade. Tenho vontade de fazer um doutorado e de dar aula. Porque eu nunca mais assumi uma classe fixa de regência. Estou sentindo que estou voltando para casa em Campinas, porque eu nasci em São Paulo e morei aqui quando estudei na Unicamp. Parece que estou naquele período da meia-idade em que você começa a dar uma estabilizada.

Você cansou da estrada?

Eu sempre fui um pouco cigana e agora parece que eu tenho um desejo de acalmar. Ter uma casa, um cachorro. Teve uma época da minha vida que eu deixava uma mala na porta do apartamento em Niterói e outra em Mendoza na Argentina. É bom, mas cansa.

Qual foi o reconhecimento mais importante para você? Que a consagrou como regente?

O prêmio que eu tive no Japão, em 1997, do qual participaram candidatos do mundo inteiro. Foram selecionados uns 60 regentes. Vinte faziam prova em Bruxelas, 20 em Tóquio e outros 20 em São Francisco. Eu escolhi São Francisco. Depois de seis meses dessa primeira fase, fui para lá. Desses 20, foram selecionados quatro de cada lugar. Depois de seis meses, os 12 foram para Tóquio. Com um repertório dificílimo, regemos três sinfônicas e, no fim, eu fui uma das três premidas e a primeira mulher premiada nos últimos 30 anos do concurso.

O que você sentiu na primeira vez que regeu a O SMC como titular?

Essa orquestra é especial. Encontro aqui um campo absolutamente fértil para desenvolver a minha musicalidade, o meu som. Cada regente tem um som. A mesma orquestra soa completamente diferente na mão de cada regente. Normalmente, você demora um pouco para que a orquestra chegue no seu som. A Nacional demorou uns meses, a de Mendoza também, foi duro. A de Campinas, eu posso dizer que em uma semana de ensaio ela chegou no meu som. Não digo que chegamos ao ideal artístico que eu imagino e que vamos chegar. Eu fiquei tão feliz com o primeiro concerto. Eles estão se doando. Estamos realmente conectados.

MERGULHO

"Meu trabalho cotidiano é com a partitura. Quando saio da orquestra, vou me aprofundar nesse universo que é a criação do compositor. E isso é a coisa mais fascinante que existe. Porque você descobre o segredo dessas mentes geniais."

CAMPO FÉRTIL

"Essa orquestra (Sinfônica Municipal de Campinas) é especial. Encontro aqui um campo absolutamente fértil para desenvolver a minha musicalidade, o meu som. Cada regente tem um som. A mesma orquestra soa completamente diferente na mão de cada regente.
 

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